O projeto de Villa-Lobos era civilizar os brasileiros com a música de Bach
Villa-Lobos, gênio e... ponto!

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Na última quinta-feira, 5/3, mal rompia o Sol no horizonte e eu já estava zapeando a mensagem de feliz aniversário ao Villa-Lobos. 133 anos! Minutos depois o amigo L. Monteiro me respondeu com um vídeo da Dale Kavanagh com a transcrição para violão solo do segundo movimento do Concerto para Violão e Orquestra. “É o Brasil condensado em oito minutos”, me disse o amigo, violonista e musicólogo. Foi a dica para eu passar a quinta-feira e parte do sábado numa maratona do Villa-Lobos, binge watching e binge listening, como se diz quando alguém fica pendurado durante horas numa série da Netflix.  

Primeiro, ouvi o Concerto para Violão inteiro, com orquestra e tudo. Depois, sei lá por que razão, a Valsa da Dor, que me fez recordar o excelente filme do Zelito Viana, com o Marcos Palmeira (Villa novo) e o Antônio Fagundes (Villa velho), sob a direção musical do maestro Sílvio Barbato, diretor artístico da Orquestra do Teatro Nacional Cláudio Santoro, morto num acidente aéreo em 2009, ano do cinquentenário de morte do Villa.

Em seguida, ouvi as peças para piano As Três Marias, Ondulando, Impressões Seresteiras, as Cirandinhas e o Rudepoema (dedicado ao amigo pianista Arthur Rubinstein). No meio, as Cirandas, “obras tão singulares e necessárias quanto os Prelúdios de Chopin”, no dizer do compositor Willy Corrêa de Oliveira.

Depois dei play no Noneto: Uai, uá, guru, guru, guru! Panepê! Zizambango! Dango! Zangorangotango! Kkkkkkk, esse Villa e seus berros primais, suas polirritmias! 

Tive que tomar um bom fôlego antes de pular para as cordas do Fábio Zanon, interpretando os 12 Estudos para Violão e os cinco Prelúdios. As duas obras são a “origem harmônica da Bossa Nova”, segundo o maestro Osvaldo Colarusso.

Ainda na quinta, acredite quem quiser, também escutei as nove Bachianas Brasileiras. Mais de três horas – sem contar as paradas pra beber água e fazer xixi – de maravilhas, saudades, tristezas, efusões de alegrias, barulhos da roça, apitos de trem, mugidos de boi, tropeções de gente caminhando pela vida afora. Mais um retrato do Brasil.    

Paisagens de notas - Deixei para o sábado os choros (ouvi o 10º, Rasga Coração), os quartetos para cordas (o 11º, o 12º e o 17º, todos da “fase madura”) e as sinfonias, das quais ouvi duas, a mais popular, a de nº 6, Sobre a Linha das Montanhas, e a 7ª, Odisseia da Paz.

A sexta sinfonia, inspirada no perfil da Serra dos Órgãos, do Corcovado e do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. Isso mesmo! Se para o Galileu a natureza está escrita em linguagem matemática, para o Villa as paisagens foram desenhadas com notas musicais, como também achava o seu discípulo Tom Jobim. A sétima sinfonia, composta logo depois da tomada de Berlim pelas tropas da União Soviética, que pôs fim à II Guerra na Europa. Ambas da fase madura (que vai da 6ª à 12ª), essas sinfonias, nos diz Fábio Zanon, testemunham o “esforço consciente”’ de Villa-Lobos “de inventar um idioma clássico especificamente brasileiro, mais do que ser passivamente pautado por um folclorismo que já se tornava cada vez mais ultrapassado em face das rápidas mudanças na sociedade brasileira nos anos 1940”.

Essa maratona, pessoal, foi o meu jeito de comemorar o Villa-Lobos este ano. Como ele compôs mais de 2.000 peças, tenho material suficiente para várias maratonas ao longo dos próximos 27 anos, antes de morrer!

Villa, Retrato do Brasil - Há 11 anos, por ocasião do cinquentenário de sua morte, escrevi um longo perfil dele para a revista Retrato do Brasil. Ali mencionei o desgosto que por ele nutria o pessoal da “Música Nova” (a turma do “novo”, do politonalismo, do atonalismo, do experimentalismo, do serialismo, dos processos fonomecânicos e eletroacústicos em geral) por causa de seus empréstimos regionais, rurais, étnicos e folclóricos, sinais de “atraso e reação”. Em contraponto, citei trechos da autocrítica do Willy Corrêa de Oliveira, um dos mais importantes “músicos novos”, publicada em forma de ensaio naquele mesmo ano no Estadão.

Anotei que o ensaio de Willy “é relevante para a compreensão de Villa-Lobos pelo julgamento que faz de suas opções técnicas e estéticas, que, de maneira geral, subvertem os postulados gramaticais e sintáticos considerados ‘corretos’ pelos cultores normativos da chamada ‘grande música’. Villa-Lobos, diz o professor, ‘foi grande cultor de melancolias, (...) de delicadezas, de grosserias, de cantos populares, de cantos impopulares, de fanfarras, de invenções supremas, de banalidades insuportáveis, imponderáveis, carioca e estrangeiro (da Terra do Nunca). Escrever sobre Villa-Lobos é fazer rol de exageros e o único atenuante está em que nunca se exagera o bastante que alcance a magnitude do enredo de sua complexidade. Contradições adoidadas, geniais’.

“Brasileiro” desde quando? - No artigo, tratei também da interminável polêmica sobre quando o Villa-Lobos passou a compor “música brasileira”, após a sua fase impressionista marcada pela influência de Debussy, se foi a partir da Semana de 22, ou se depois de sua primeira viagem a Paris, em 1923, quando tomou um choque ao ouvir a Sagração da Primavera de Stravinsky. Ao voltar de Paris, em setembro de 1924, ele mesmo disse que ouvir a Sagração foi a maior emoção de sua vida, em conversa com Manuel Bandeira, registrada na revista Ariel.

Perfilam a primeira corrente o biógrafo do Villa, Vasco Mariz, e o compositor e professor da USP José Miguel Wisnik. Na segunda está o antropólogo social Paulo Renato Guérios, da Universidade Federal do Paraná, de quem tomei emprestados muitos argumentos para escrever o meu artigo de 2009. Infelizmente, só tempos depois tomei conhecimento de uma terceira posição, a do sociólogo André Álcman Oliveira Damasceno, apresentada na dissertação de mestrado que apresentou em 2007 na Unesp, e retomada em 2014 na tese de doutorado.

Segundo Damasceno, Villa-Lobos se assume “brasileiro” tanto antes como depois da Semana de 22 e da primeira viagem a Paris, num interessante processo de “negociações simbólicas na formação da moderna música brasileira”.

Negociações simbólicas - Desde as primeiras apresentações, diz Damasceno, teria havido em sua música a negociação constante de uma estética nacional, nos moldes modernistas, em diálogo intenso com uma estética internacional, primeiro com Debussy e depois com Stravinsky.

“Essa negociação – diz Damasceno – ocorria da mesma forma na escolha do repertório: quanto mais tradicional o público, mais convencional era sua música e vice-versa. Seu grande trunfo para os ávidos por uma inovação estética em termos nacionais era Danças Características Africanas (1914-1915), executada regularmente desde 1915. As Danças foram apresentadas ao pianista Arthur Rubinstein, em 1918. Esta obra dialogava com a música popular urbana devido às leves síncopes incorporadas. Ao mesmo tempo, Villa-Lobos mesclava músicas bem próximas ao romantismo tardio de Saint-Saëns, exemplificado na semelhança de O cisne (da sinfonia O carnaval dos animais, de 1886) com a peça O canto do cisne negro (1915), de Villa-Lobos”.

“Dessa forma, o que ocorreu em 1923 não foi uma mudança de percurso, como diz Guérios (…), mas sim um aprofundamento de tal negociação em prol do nacional com as possibilidades rítmicas e harmônicas abertas pelo compositor da Sagração da Primavera (1913), respectivamente, no uso da polirritmia, da síncope e da politonalidade”, escreve o sociólogo.

Angústia estética - Damasceno acrescenta que “na pesquisa de mestrado apontamos uma angústia estética de Villa-Lobos que tenta a todo custo afirmar-se como um artista autenticamente nacional. Essa angústia gerou uma desleitura estética das fontes stravinskyanas e debussyanas que possui certos parâmetros com a teoria da angústia da influência de Harold Bloom (crítico literário americano), que indica processos de desleitura poética de um poeta sob seu predecessor, como Shakespeare fizera em relação a Marlowe. Conforme afirmamos, essa desleitura só fora possível devido à dupla socialização de Villa-Lobos entre o meio erudito e a música popular urbana, especialmente o choro”.

Um artigo resumindo a dissertação de mestrado de Damasceno e a sua tese de doutorado estão disponíveis na Internet, assim como o artigo de Paulo Renato Guérios, “Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em um músico brasileiro”.

No meu artigo, eu também discuti o que teria sido a suposta acomodação de Villa-Lobos, ao “trocar” as ousadias inventivas dos 12 Estudos para Violão, por exemplo, pelo neoclassicismo dos Prelúdios ou das Bachianas, como pensa, no caso das Bachianas, o compositor Lorenzo Mammi. Como se, rebati, esse tipo de “acomodação” também não tivesse acontecido com Stravinsky, “talvez porque a busca frenética pelo ‘novo’ também se esgote”. Lasquei ali: “As Bachianas correspondem à assinatura universal de Villa-Lobos. Qualquer cantora lírica que se preze tem no repertório as Bachianas nº 5, chame-se Reneé Fleming ou Anna Moffo, Anna Netrebko, Victoria de los Angeles, Bidu Sayão, Arleen Auger, Kathleen Battle, Josira Salles e tantas outras. Ponto.”

Conjunções adversativas - Uma mania nacional sempre foi a de julgar Villa-Lobos com um “mas”, um “contudo” ou um “todavia”. “Villa foi genial mas cometia muitos erros; Villa foi genial mas era instintivo, não dominava a técnica; Villa foi genial e por aí vai...”. Semana passada mesmo, a Folha de S. Paulo publicou matéria da repórter Camila Fresca questionando se Villa-Lobos foi instrumentista e regente tão genial quanto compositor. A repórter ouviu alguns de seus defensores, mas bem que podia ter recontado a historinha que se passou quando o genialíssimo violonista espanhol Andrés Segovia, a quem Villa-Lobos dedicou os 12 Estudos para Violão, disse-lhe que determinada passagem era impossível de ser executada. Ah, é, é! – interrompeu o Villa num rompante, arrebatando o instrumento das mãos de Segovia para ensinar-lhe como tocar a tal passagem.

Também o maestro Osvaldo Colarusso defende a excelência instrumental do Villa. Ao avaliar que ele produziu a mais importante coleção de obras originalmente escritas para o violão, Colarusso diz que só mesmo um compositor que dominasse o instrumento como ele poderia alcançar tal façanha.

Gênio consumado – A propósito do mesmo assunto, eu mencionei no artigo a opinião do crítico Luiz Paulo Horta sobre a excelência das composições de Villa-Lobos. Horta afirma que os quartetos para cordas constituem “a mais rigorosa das formas musicais, aquela que não admite ‘enchimentos’, onde o artista não tem como disfarçar eventuais falhas técnicas ou de inspiração”. Quer dizer, são obras de artistas consumados. Daí Horta faz uma conta para atestar as habilidades do Villa: durante o século XX, o húngaro Bela Bartók escreveu seis quartetos; o alemão Paul Hindemith, sete; o russo Serguei Prokofiev, dois; e o russo Igor Stravinsky, nenhum. Ora, sublinhou Horta, Villa-Lobos compôs 17, seis até 1938 e os demais a partir de 1942. Villa morreu em 1959, antes de concluir o 18º. Foi um gênio consumado. Ponto! 

Gênio musical, sem qualquer dúvida, com uma personalidade complexa, cheia de contradições. No artigo eu registrei que uma de suas grandes contradições, essa de cunho político, foi a sua deserção da República Velha para aderir à Revolução de 30. Antes, ele havia sido patrocinado por famílias da elite paulistana, os Guinle, os Penteado e os Prado, que bancaram parte das despesas de suas viagens a Paris em 1923 e 1927. Depois de 30, tornou-se funcionário do governo. Eis o que escrevi no meu artigo: “A volta de Villa-Lobos ao Brasil coincidiu com a queda da República Velha e a vitória da Revolução de 1930, sob o comando de Getúlio Vargas. Em São Paulo, o músico caiu nas graças do interventor João Alberto, um pianista amador. Em 1931, organizou a Caravana de Arte Brasileira,  que percorreu mais de 50 cidades do interior paulista, com a participação de grandes artistas, como os pianistas João de Souza Lima, sua esposa, Lucília, Guiomar Novaes e Antonieta Rudge. Começou a organizar em São Paulo as grandes concentrações do Canto Orfeônico e, como resultado, foi dirigir a Superintendência de Educação Musical e Artística (Sema) do Ministério da Educação”.

“Trilha do Estado Novo” - Começa a se formar nessa época, provavelmente entre os paulistanos da República Velha derrotados por Getúlio em 1930 e depois em 1932, a acusação de Villa-Lobos ter composto a “trilha sonora do Estado Novo”. Hoje há muitos elementos para demonstrar que essa leitura é rasa, incompleta e até idiota. Ao contrário, o que há são evidências de que, em vez de ter sido usado pela ditadura de Getúlio, ele, Villa-Lobos, é que mais a usou para o seus propósitos, isto é, difundir a música entre as massas.

No artigo eu mencionei o mea-culpa feito ao jornal Valor Econômico pelo crítico musical mais mal-humorado do País, José Ramos Tinhorão, arrependido de ter chamado o compositor de “maestro da ditadura”, no Jornal do Brasil, nos anos 1970. “Claro que ele foi um funcionário da ditadura (...). Mas cheguei à conclusão de que Villa-Lobos não colaborou com a ditadura, ele a usou”, disse Tinhorão.

Leio agora que numa entrevista à Folha de S. Paulo de 5 de novembro de 2009, Tinhorão relembrou o dia (7 de setembro de 1940) em que assistiu Villa-Lobos regendo o coral de 40 mil pessoas no campo do Vasco da Gama, no Rio. “De repente, chegou o maestro com sua cabeleira, subiu num pódio de madeira armado no meio do campo. A um sinal dele, o estádio inteiro começou a cantar. Eu me lembro de que eram canções que falavam da natureza, do Brasil. Era uma demonstração de massa, um conjunto de coros formando um imenso coral. Fazia parte da política cultural do Estado [Novo], pelo qual Villa-Lobos gostosamente se deixou usar, por causa da preocupação que tinha em divulgar a música. Ele queria que todo mundo se interessasse por música. (…) Era um jogo duplo: ele se aproveitou do fato de o governo ter interesse nisso [a música], e o governo se aproveitou do fato de ele ser o grande nome que poderia ser usado para essa política [cultural]”.

Programa pedagógico - Ainda com relação à, digamos, razão instrumental de Villa-Lobos na relação com o governo Getúlio, eu escrevi que ele estava convencido “de que o povo pode ser educado e atingir patamar superior de civilização por meio da música”. Ele achava “que os brasileiros não estavam preparados para ouvir Bach, suprassumo da civilização ocidental [em sua opinião e na opinião de seu amigo Mário de Andrade]. O remédio seria então prepará-los por meio da educação musical. Já em 1930, começou a compor as Bachianas Brasileiras, ‘transfigurando’ temas do folclore nacional na linguagem do mestre de  Leipzig, e a transcrever para o piano e o violoncelo peças do teclado de Bach. Em 1932, compôs o primeiro volume do Guia Prático, um conjunto de 137 cantos infantis, fazendo depois arranjos especiais de uma seleção dessas peças para o piano. O segundo volume contém hinos nacionais e escolares, além de canções patrióticas, algumas delas com loas aos trabalhadores e à figura de Vargas, segundo a cartilha do Estado Novo”.

Anotei ainda que como ele “estava no País em 1945, quando Vargas foi derrubado, a imagem do maestro, já conhecida no mundo inteiro, acabou sendo poupada. Isso contribuiu para que ele continuasse a sua carreira internacional, nos EUA e na Europa. Figura admirada pelos franceses desde os anos 1920, nos anos 1940 tornou-se uma personalidade de destaque entre os americanos, inicialmente empurrado pela política da boa vizinhança do presidente Franklin Roosevelt. Villa, que havia sido pioneiro na composição de trilha sonora para o cinema brasileiro, em 1937, com Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, foi convidado, em 1958, pela Metro Goldwyn Mayer para fazer a trilha de Green Mansions (Floresta Amazônica), dirigido por Mel Ferrer e estrelado por Audrey Hepburn e Anthony Perkins.

Concluí o artigo afirmando que “talvez ainda não seja possível definir com precisão a personalidade tão complexa do maestro Heitor Villa-Lobos. Sua biografia merece importantes reparos, só viáveis com o aprofundamento das pesquisas já em curso. E sua obra necessita urgentemente de uma edição crítica, que certamente levará anos para ser concluída”.

Avanços - Nos últimos 11 anos, felizmente, houve avanços significativos na compreensão do homem e da obra, graças, por exemplo, aos esforços dos departamentos de música da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de São Paulo, que organizam anualmente seus respectivos “Simpósios Villa-Lobos”.

Quanto à revisão crítica da obra, a Fundação Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo) concluiu o trabalho hercúleo, iniciado em 2011, de gravar a integral das sinfonias de Villa-Lobos com base em partituras corrigidas nota a nota. O projeto, concebido pelo diretor artístico da Fundação, Arthur Nestrovski, foi executado pelo maestro Isaac Karabtchevsky, estando disponível para o público numa caixa de seis CDs gravados pela Naxos Records.

Concluo esta crônica em pleno 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, ouvindo a Modinha (Seresta nº 5), na voz da goiana Maria Lúcia Godoy, e a Melodia Sentimental, interpretada por Nadine Sierra, uma moça da Flórida.

Acabou!, exatamente como termina a seresta Cantiga do Viúvo, sobre versos do Carlos Drummond de Andrade.