É da natureza dos poetas copiar não só da natureza mas também de seus parças que ficam com o povo nas praças e no céu com o condor
Não têm graça as piadas que precisam de explicação. E os poemas?

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Metido a besta, de vez em quando rabisco uns versos chinfrins e, no mais das vezes, deixo perplexas algumas pessoas que perdem o tempo me lendo.

Qual seria a dificuldade? Talvez a falta de hábito com a leitura de poesia, não muito levada a sério no país, ao contrário do que acontece no Chile, com dois Prêmios Nobel de Literatura conquistados por poetas, Gabriela Mistral (1945) e Pablo Neruda (1971), ou nos Estados Unidos, onde esse tipo de escrita alcança qualidades homéricas com um Bob Dylan, Nobel de 2016.

Não é que faltem poetas excelentes na terra de Drummond, João Cabral, Chico Buarque e Conceição Evaristo. É que sobram, em compensação, beletristas em todos os rincões da Pátria, afogados em melosas (ou pra provocar: fanosas) sentimentalitoses. Prevalece daí uma ideia rebaixada do gênero.

Para não me estender muito, vou fazer alguns comentários sobre a composição de dois de meus últimos poeminhas, de caráter incidental, ou de ocasião (quem quiser pode chamar de oportunistas!), que veiculei numa lista do Whatsapp, com formas que tentei controlar do começo ao fim.

O primeiro poema:

Meteoros sobre a cidade natal -
Coriscos-presságios do destino-raiz
arreganham gretas desde o tempo-pelourinho -
(Cidadão, não! Engenheiro, doutor, capitão!)
Vampiros de vontades, sonhos, quimeras,
versando sanha e dor nos arredores -
Raras estrelas-fôlegos tombam  
lavrando ouro sobre cruzes e tumbas - 

Quem deporá os mármores
que afrontam a cidade fatal?

1) O mote foi a frase viral da cidadã carioca Nívea Valle del Maestro, que, acompanhada de Leonardo Santos Neves de Barros, reagiu à abordagem de um fiscal sanitário que trabalhava na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro na noite de 4 de julho, dizendo do marido: “Cidadão, não! Engenheiro civil, formado, melhor do que você”.

2) Explorei aqui a contradição entre “cidade natal” e “cidade fatal”, inspirado na referência de Jean-Pierre Lefebvre sobre a língua alemã, “idioma natal e fatal” do poeta romeno-judeu Paul Celan, traduzido por ele. (Choix de poèmes réunis par l’auteur, Éditions Gallimard, Paris, 1998, pág 7 e 8)

3) Os meteoros que passam sobre a cidade natal no primeiro verso remetem, obviamente, à estrela-guia que apontou para os reis magos o caminho até a cabana onde nasceu Jesus. A escolha de meteoros no lugar de estrela acrescenta um quê de catástrofe à cena.

4) As palavras compostas no texto – coriscos-presságios, destino-raiz, tempo-pelourinho e estrelas-fôlegos – são recursos de concisão. Mas, contraditoriamente, são abundantes, como no caso de “coriscos-presságios”, uma vez que os meteoros já deixam (co)riscos no céu. Da mesma maneira, “destino-raiz”, um jogo de palavras com um termo da moda, em oposição a “Nutella”, que ressalta o destino manifesto da classes dominantes do país fincado nos tempos do pelourinho, um instrumento de tortura da classe trabalhadora na época colonial.

5) A frase-mote entre parênteses corta a estrofe principal em dois, definindo os sujeitos que ainda sujigam o País, “vampiros de vontades”. É de notar o jogo das palavras com a letra vê – vampiros, vontades e versando; a oposição sonhos e sanhas; a continuidade dor e arredores, que chama a atenção para o fato de a periferia ser composta de dores.

6) Os dois versos finais da estrofe principal alerta para os limites dos opressores. Eles também morrem! Alguém poderia dizer que “estrelas-fôlegos” se referem ao PT. Que seja! Elas caem (tombam) sobre os desgraçados da Casa Grande, transformados em monumentos (tumbas) dourados.

7) Os dois últimos versos, destacados como num soneto inglês, podem ser lidos como uma conclamação à esperança e à reescritura da História, em óbvia referência ao iconoclasta movimento Black Lives Matter.

Será que eu poderia ser mais óbvio?

Passo a falar do segundo poema:

Prometia ser feliz o meu país
na época das três mulheres do sabonete Araxá.
Seriam as três Marias?
A mais nua era uma dourada borboleta.

Perfumam hoje o meu país
sabonetes mais de espinhos que de rosas,
com cheirinho de ética protestante
no espírito do capitalismo.

A gente estava sonhando...
Um cartaz amarelo, sem sinal das
três moças do sabonete Araxá, grita:
““Neste país é proibido sonhar.”” 

D’après Bandeira & Drummond

1) O motivo aqui foi a decisão do final de junho da ministra Rosa Weber, do Supremo, que negou liminar para que um jovem de 30 anos, preso pelo furto de dois xampus de R$ 10,00 cada, pudesse ser punido com pena alternativa.

2) Resolvi, então, me apropriar da Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá, poema de Manuel Bandeira de 1931, um dos marcos do modernismo literário brasileiro.

3) Como o próprio poeta contou, a inspiração para a peça surgiu quando ele viu numa rua de Teresópolis, Rio de Janeiro, um cartaz publicitário do sabonete Araxá com a imagem de três belas mulheres, agora objetos de seus sonhos. No final do poema ele ecoa a frase de Ricardo III, dizendo que daria o seu reino pelas três mulheres do sabonete Araxá. Mulheres-objeto? Sim, senhor, do começo ao fim da Balada!

4) Volto ao meu poema. Na primeira estrofe, eu me refiro à promessa de modernização do País sintetizada no cartaz do sabonete Araxá, que o tornaria mais feliz. Reescrevo dois versos da balada original, citando as três Marias e a mulher nua comparada a uma dourada borboleta. Não espalhem, mas esse último verso contém uma ironia que denuncia o fato de o País ter se modernizado, sim, na indústria, na técnica, na urbanização, na construção de Brasília, mas não nas práticas sociais. Qual seria a ironia? A expressão “dourada borboleta”, que o próprio Bandeira parece ter tirado do segundo verso do poema O Navio Negreiro de Castro Alves: “‘Stamos em pleno mar... Doudo no espaço / Brinca o luar — doirada borboleta”. Na primeira vez, há um jogo entre a lua e a borboleta. Na segunda, entre a moça nua e a borboleta. Desde 1868, quando Castro Alves publicou o poema, mudou pouco a lua e pouco mudaram também as relações sociais baseadas no escravismo colonial do Brasil, essa é que é uma verdade nua e crua!    

5) A segunda estrofe, evidentemente, remete à decisão da ministra Rosa Weber, em contraste com a decisão do Superior Tribunal de Justiça abonando a prisão domiciliar daquele Queiroz. Os dois versos finais repetem quase igual o título do clássico do sociólogo alemão Max Weber (seriam primos distantes?), A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.

6) A minha estrofe final, que sublinha a distância entre as promessas do modernismo e dura realidade de nossos dias, é um decalque da estrofe final do poema Sentimental de Carlos Drummond de Andrade: “Eu estava sonhando…/ E há em todas as consciências um cartaz amarelo:/ “Neste país é proibido sonhar.”

7) Posso mencionar alguns artifícios usados para facilitar a leitura do poeminha: são três estrofes de quatro linhas cada, com medidas irregulares, sem rimas; a palavra “país” comparece em todas as estrofes; o verbo “prometer” do primeiro verso da primeira estrofe contrasta com o verbo “perfumar” do primeiro verso da segunda estrofe, carregado, nesse caso, de ironia, pois se refere a sabonetes de espinhos e não de rosas; na terceira estrofe, aparece outra palavra com a letra pê, de “proibido”; em resumo: nunca cheirou bem a promessa do progresso da nossa bandeira (nada contra o Manuel), proibido para os pobres!

Penúltima nota: como os iogurtes, os poemas de ocasião têm data de validade. Daqui a dois anos é provável que ninguém os compreenda, pelo menos não em sua forma programática. 

Aqui termino a minha Crônica & Aguda do domingo, pensado com o meu zíper: se juntasse uns 100 poeminhas desses que eu tenho debuxado assim-assado sem pudor, e os publicasse num livro, eu acabaria virando um poeta oficial. Daí, em vez de eu explicá-los, com tantos chutes e teorias estrambólicas, quem sabe alguém da academia fizesse isso pra gente, descobrindo coisas que eu jamais teria imaginado!