Ô, coronavírus, qual é a tua completa tradução?
O homem é o homem e suas ziguiziras sociais

Antônio Carlos Queiroz (ACQ) –

Na segunda-feira, 2, li sem entender um tuíte do diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus.

Dizia o texto em inglês: “Knowing & understanding an epidemic is the first step to defeating it. We are in unchartered (sic) territory with #COVID19. We have never before seen a respiratory pathogen that is capable of community transmission, but which can also be contained with the right measures”.

Traduzido, o tuíte dá mais ou menos no seguinte: “Conhecer e compreender uma epidemia é o primeiro passo para derrotá-la. Nós estamos em terreno desconhecido com o #COVID19. Nunca antes vimos um patógeno respiratório que é capaz de transmissão comunitária, mas que também pode ser contido com as medidas certas”.

Como eu sei, parodiando o Ortega y Gasset, que o homem é o homem e suas ziguiziras sociais, raciocinei que os vírus desde sempre se propagassem por  “transmissão comunitária”. Por isso achei que havia no tuíte do Tedros algum erro de digitação. Ledo & Ivo engano da minha parte, um ignorante enciclopédico. Nesse caso, a transmissão do Covid-19 ficou lost in translation

Tratei de trocar ideias com os universitários e, depois de fazer uma pesquisa básica na Rede, descobri que a tal “transmissão comunitária” é um termo médico utilizado pela OMS para designar uma fonte de infecção desconhecida ou, então, a perda dos contatos dos infectados com outras pessoas. Trata-se, portanto, da dificuldade de os técnicos de saúde determinarem a rede epidemiológica na comunidade além dos casos confirmados, como informa a Wikipédia. 

Desde o dia 28 de fevereiro, os relatórios diários da OMS trazem um quadro com a definição de cinco termos relacionados com a propagação do Covid-19:

1) A transmissão comunitária, evidenciada pela incapacidade de relacionar casos confirmados através de cadeias de transmissão de um grande número de casos ou pelo aumento de testes positivos através da triagem de rotina de amostras-sentinelas. 

2) A transmissão local, que indica os lugares em que a fonte de infecção está ativa no local reportado.

3) Os casos importados, indicando que os pacientes foram infectados fora do local reportado.

4) Os casos sob investigação, indicando os locais onde o tipo de transmissão não foi determinado para nenhum caso.

5) Transmissão interrompida, que indica os locais onde se demonstrou a contenção da contaminação.

Depois do esforço de reportagem, finalmente entendi o tuíte do simpático diretor etíope da OMS, cujo sobrenome, Ghebreyesus, imagino significar “Jesus hebreu”. Confesso, porém, não ter ficado satisfeito. Me deu uma coceira e das  brotoejas brotaram perguntas atrevidas, das quais menciono duas.

1) Não seria mais lógico chamar a “transmissão comunitária” de “fonte de transmissão desconhecida” (“unknown transmission source”)?

2) A expressão “transmissão comunitária” não estaria contaminada pela ideologia liberal, que vê a sociedade como uma coleção de indivíduos? Explico: quando a fonte da infecção é desconhecida, a gente a chama de “comunitária”; quando é determinada, a gente nomeia e carimba a fonte-indivíduo. No primeiro caso, temos um enigma, um desvalor. No segundo, um esclarecimento, um valor. Humpf!

Dessas variações acabei pulado para a ilha que hospeda o Robinson Crusoé, ali nas costas do Chile do Piñera. Matutei: como está de quarentena com o Sexta-Feira, o filho da mãe vai escapar da pandemia e depois, lépido, pimpão e faceiro, voltará para Londres para propagar no Twitter as delícias do neoliberalismo junto com fake news sobre o coronavírus. Humpf de novo!

Mais calmo, desviei a atenção para uma resenha da revista Nature de um artigo de pesquisadores da Universidade de Ohio, Estados Unidos, que discute justamente a questão do abuso dos jargões técnicos por parte da comunidade científica.

A resenha  começa assim: “A linguagem excessivamente técnica em artigos científicos não apenas confunde os não especialistas como pode alienar os leitores, excluindo-os potencialmente do debate e do conhecimento científicos. Essa é a conclusão de um estudo publicado no Journal of Language and Social Psychology, e se aplica tanto aos artigos de interesse geral quanto aos artigos científicos”.

Baixei o próprio artigo dos pesquisadores, liderados pela doutora Hillary C. Shulman, da Escola de Comunicação da Universidade Estadual de Ohio, cuja conclusão é uma excelente advertência: os cientistas deveriam fazer um esforço para evitar ao máximo as tecnicalidades, quando se comunicam com o público, atitude que traria ganhos nas relações médico-paciente, nas campanhas de saúde pública e nas campanhas políticas, por exemplo.

Humpf! Por que será que o óbvio não se espalha como os vírus?

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